quarta-feira, 6 de abril de 2011

no balcão do Café Bamboo.

andar com fé

Por Ana Laura Nahas

É preciso ter fé em alguma coisa, nem que seja no tempo, que traz serenidade e ameniza as saudades, ajuda a aceitar os excessos, as rugas, os desamores, as decisões e os critérios, conserta desvios, cicatriza feridas. O tempo torna a falta de sentido um pouco mais suportável, transforma a dor em potência, mastiga, engole, digere e manda às favas um dia de trânsito engarrafado, conta no vermelho, enxaqueca, desarranjo ou aquela ausência repetida, sentida (ai), incontida, aquela ausência (sabe?), sentida (ai), incontida, repetida.

É preciso ter fé em alguma coisa, nem que seja nos encontros, que a gente coleciona e acredita na lei natural deles, deixar um tanto, receber outro, dizer de histórias, preferências, vontades e a descoberta de que tem em comum o gosto pela madrugada, três amigos, um quadro na sala de estar ou uma falha no cromossomo 17. Os encontros ajudam a dizer das divergências, referências e da ideia fixa de que um bom samba resolve quase tudo.

É preciso ter fé em alguma coisa, na metafísica ou nas canções, o Rei cantando daquele modo bonito dele, a moça chorando enquanto era um era dois era cem era o mundo chegando e ninguém, as Bachianas Brasileiras, o Grande Circo Místico, o Elis e Tom. As canções embalam alegria e serenidade, barulho e pausa, grave e agudo, vontade e saudade, desafio e equilíbrio, as coisas todas juntas numa pilha de discos e aquele, seminovo, dividido em dois, muito e pouco e por fim a faixa que não para de tocar:

“Já matei você mil vezes e seu amor ainda me vem
Então me diga:
Quantas vidas você tem?”

É preciso ter fé em alguma coisa, nem que seja na Física, na teoria da relatividade e no fato de que há dezenas de verdades, boas e más, num único fato, de que dois pontos de vista diferentes oferecem visões diversas, e ambas perfeitamente aceitáveis, de um mesmo objeto. Daí as dores doem menos, os pesos pesam menos e, depois de algumas horas de sono, dá até pra reconhecer o esforço alheio de dizer, ir, deixar, perdoar ou ficar, o tamanho do passo que parece pequeno, mas quem sabe tenha sido imenso.

É preciso ter fé em alguma coisa, nem que seja numa noite de sono inteira, a madrugada silenciosa, o braço forte que envolve o corpo, o modo silencioso que tem todo o encanto do mundo, cheiro no travesseiro, o coração todo tomado de uma alegria consistente, o café na manhã seguinte, a diversão toda, o ritual inteiro.

É preciso ter fé em alguma coisa, nem que seja na opção de rir de tudo quanto possível apesar das ausências, dançar quase sempre apesar das perdas, investir na leveza e no movimento, na beleza do improviso, na necessidade do acaso, forró, xote, xaxado e baião postos a serviço do compositor que compartilha referências, afetos, criações e opiniões até quando os outros preferem guardá-los. É preciso, como o Gil canta no disco que embalou este texto (eu acredito), ter fé em algum coisa, nem que seja na festa.

(Crônica publicada no jornal A Gazeta 28/08/2010)

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